Artigo na revista da APP

 Santos, Margarida Fonseca (2019), "Histórias em 77 Palavras ― um caminho para escrever e ler melhor". In Palavras. Lisboa: Associação de Professores de Português, pp. 43-47.

Histórias em 77 Palavras ― um caminho para escrever e ler melhor

Resumo

O blogue das 77 Palavras nasceu da necessidade de motivar os alunos para a escrita, envolvendo-os na construção de textos e levando-os até ao verdadeiro trabalho literário, ou seja, à revisão e apuramento da escrita. Com este propósito, são lançados desafios de escrita que vão melhorando, a cada desafio, a escrita dos alunos. Esses desafios partem de constrangimentos, como letras ou palavras obrigatórias, por exemplo, ou são mais livres, usando frases ou imagens como motores de escrita. Outro efeito deste trabalho constata-se quando, à medida que progridem na escrita, desenvolvem gosto pela leitura, centrando-se no «como se conta uma história», apreciando a escrita em si.

O blogue «Histórias em 77 palavras» surgiu do meu trabalho como formadora e professora da chamada Escrita Criativa. Sinto-me cada vez mais afastada desta denominação, pois está muitas vezes associada a um receituário para escrever um livro ou um conto. Não é esse o meu objetivo, ou melhor, esse é o contrário do meu objetivo. Então, de que estamos a falar?

É consensual que os nossos alunos não gostam de escrever, o que tem implicações graves em todas as áreas do conhecimento e, em particular, no gosto pela leitura. Ciente deste problema, queria experimentar uma abordagem diferente dos temas de composição recorrentes ou, pior ainda, do tema livre, capaz de aprisionar a mente e resultar num total fracasso. Este aprisionamento do cérebro e, consequentemente, da criatividade despertou-me a atenção.

Procurei, então, entender a nossa mente nos bloqueios: o que os provoca, e, paralelamente, o que nos leva a ser mais criativos e empenhados (Santos, 2015). Os autores da atualidade que me guiaram neste estudo foram Daniel Goleman, António Damásio, Terry Orlick e a dupla Donna Wilson e Marcus Conyers, pois o seu trabalho incide especialmente sobre o comportamento da mente em situações desafiantes e sobre o poder da metacognição no avanço da aprendizagem. Aprendi que o cérebro tem características que são potenciadas quando estamos em modo de jogo, empenhados mas fora da nossa zona de conforto. Assim, abrem-se novos mapas mentais e conexões preciosos para a aprendizagem ― era preciso produzir este efeito na produção de texto. Já Gianni Rodari nos alertava sobre esta necessidade de criar situações novas, desafiantes, para ganhar o gosto pela escrita (e fê-lo em 1974).

Estava na altura de pôr tudo isto em prática. Criei assim o blogue ― ferramenta pedagógica ― «Histórias em 77 palavras», onde são lançados novos desafios a cada dez dias, partindo de diferentes estímulos. Eles podem ter letras proibidas ou obrigatórias, palavras impostas com ou sem sequência, frases obrigatórias que pontuam o texto, excertos de livros ou imagens.

Muitas vezes me perguntam qual a razão de usar 77 palavras? Aqui entra a verdadeira mestria da escrita: a edição do texto, capaz de criar o gosto pela escrita, fornecendo igualmente uma nova imagem da leitura, mas disso falarei mais à frente.

Imaginem que vos pedia para recontarem a história dos três porquinhos (é um pedido seguro, sabemos a história) sem usar as letras T, L e I. Dou este exemplo pois será um desafio real para nós, adultos e professores. De repente, ficámos sem porquinhos, sem palha, sem madeira, sem tijolos, sem o número três e sem lobo! Toca a substituir personagens, materiais, tempos verbais, etc. Algum de nós pensa que está a escrever uma obra de arte? Não, e aqui entra a concentração descontraída que nos leva a dar o nosso melhor (Goleman, 2016) ― divertidos com o jogo, brincamos muito focados, não vá escapar alguma letra proibida. Chegando ao final, o processo modificou-nos, levando-nos para um vocabulário diferente e para uma sintaxe diferente, assim como a encarar a história enquanto metáfora, a recontá-la noutras situações. O processo é a mais-valia deste trabalho (Santos, 2019). O resultado final pode ser, e acontece muitas vezes, surpreendente, elevando assim a autoestima e a segurança na escrita de cada um.

Este é um exemplo concreto dos exercícios a que chamo de desbloqueio, pois são divertidos, põem o cérebro a trabalhar e fomentam a entreajuda, com trocas de ideias entre colegas. Digo sempre que, neste caso, copiar (ou seja, ver as soluções de outros) é aprender, estimulando a partilha de caminhos. Os desafios no blogue estão arrumados por tema, podem consultar a diversidade de abordagens já lançadas.

Existe depois um segundo tipo de desafios que se centram na construção de texto, e esses partem de certas palavras, imagens ou frases, e cujo objetivo é a escrita mais apurada. Aqui entra a maravilhosa imposição das 77 palavras. Se, nos exercícios de desbloqueio, 77 por vezes são demasiadas palavras, nestes desafios são sempre poucas.

Não escrevemos a contar palavras, se o fizéssemos estaríamos a desvirtuar a ideia-base (Santos, 2019). Escrevemos um texto curto, mas tem sempre vinte ou mesmo trinta palavras a mais. Entra então em campo a edição: cortamos os excessos, encurtamos frases, retiramos tiques de linguagem, e encaramos as repetições de palavras na sua dupla consequência, ou como ritmo de texto ou como distração, reequacionando-as. É neste segundo momento que nos aproximamos daquilo que é escrever: valorizamos a forma como contamos, não apenas aquilo que se conta (idem).

Ao longo destes oito anos e meio de vida do blogue, várias coisas foram acontecendo. A primeira, com adultos e, sobretudo, pessoas já reformadas e que querem manter a mente ativa, mostrou-me um caminho de progresso evidente. É notória a crescente qualidade da escrita a cada texto enviado, surgindo a metáfora assim como o subentendido, obrigando o leitor a construir o que não está no papel, mas sim nas entrelinhas. É muito gratificante assistir a este processo.

As escolas foram aderindo ao projeto, havendo semanas em que recebo várias dezenas de textos para publicar. Publico-as sempre, desde que as regras estejam asseguradas. São todos muito bons? Não, mas o impacto que tem esta publicação na vontade de fazer melhor é muito importante. Há professores que usam as 77 Palavras como trabalho de casa ou fim de semana, outros em sala de aula. Podemos igualmente apelar à escolha livre dos desafios, à semelhança do que Donalyn Miller propõe para a leitura (Miller, 2009).

Criei, para ajudar os professores, uma página de apoio às escolas (77palavras.margaridafs.net) onde sugiro desafios para o mês e explico como pôr em prática esta dinâmica de escrita. A parte mais engraçada desta página é haver alunos que a descobriram e que avisam os professores que já lá está a dica para o mês. Os alunos gostam de escrever assim e querem mais desafios ― haverá melhor forma de medir o impacto deste trabalho?

Mesmo sendo muito gratificante assistir ao entusiasmo de tantos alunos, isso não era suficiente, pois a minha visão subjetiva do projeto pouco interessava. Por esta razão, agrupo todos os textos do mesmo aluno num único documento, arrumando-os cronologicamente. E é assim que posso garantir que a diferença se torna clara. Partimos do «pronto, já acabei!» (sem qualquer vontade de melhorar o que se escreveu) para textos mais apurados, mais estruturados, com subtexto e metáforas, humor e suspense, crítica social e encantamento.

Para trás, espero, ficaram as formações de professores em que os participantes me diziam que era tudo muito interessante, mas não tinham tempo para estas brincadeiras. Brincadeiras?! Escolhendo bem o desafio (neste momento são mais de duzentos), podemos chegar à teoria através da prática ― e é assim que melhor se aprende. Recordo uma turma onde, quando entrei na sala, se debatiam os prefixos. A confusão era muita. Embora tivesse preparado outra aula, centrei-me naquela necessidade. Escolhemos um prefixo, enchemos o quadro de palavras aos pares, com e sem prefixo, e partimos para o texto. Resultado: a aprendizagem prática proporcionara a apreensão do conceito e o texto ficou magnífico, feito por toda a turma. Mas o crescimento também pode ser emocional. Recordo igualmente momentos intensos, de lágrimas nos olhos, em que uma turma de 9.º ano se serviu de um desafio mais elaborado para entender e erradicar a violência emocional sobre alguns alunos por colegas (Santos, 2019), extrapolando a língua e mergulhando na vida real.

A escrita pode e deve ser libertadora, estruturante do eu, ajudando a compreender o nosso mundo e o dos outros. Mas não só. Pode e deve criar um olhar sobre a sociedade, expondo e dando opinião sobre situações de vida que tantas vezes atrapalham este infindável caminho do crescimento ― nosso e dos nossos alunos. O blogue existe assim como fomentador de escritas, partilhas e desabafos, brincadeiras e alfinetadas sociais e culturais, desenvolvimento e aprendizagem partilhada.

Contudo, o impacto deste trabalho vai para além da escrita ― será preciso olhar para o que fizemos e aprender com isso (Wilson & Conyers, 2016). A metacognição entra para nos proporcionar um olhar sobre como e porquê escrevemos e editamos daquela maneira naquele tema. Saberemos assim identificar fragilidades e pontos fortes nos nossos textos, ouvindo outros textos e sabendo dizer por que razão gostámos (ou não) do resultado final, podendo então dar um feedback formativo para quem o verbaliza e para quem o ouve. Aprendemos muito lendo ou ouvindo os textos que outros escreveram partindo do mesmo desafio. Se cada desafio já provoca, para cada um, caminhos diferentes dos habituais ao escrever, conhecer os textos de outros amplia esse efeito ainda mais, mostrando-nos outros tantos caminhos (Santos, 2019).

Como são em concreto as aulas? Costumo sempre contar uma pequena história no início. A sua função é, como todos sabemos, construir um ambiente de tranquilidade e atenção, a par do mergulho no texto narrativo, que será útil para o que vem a seguir (Storr, 2019). A escrita inicia-se com um exercício de desbloqueio. Relembro que assim se cria um ambiente de concentração descontraída, de jogo, mobilizando a mente de forma a criar novos caminhos e abordagens. Rimo-nos sempre bastante: imaginem fazer uma declaração de amor sem a letra A… Se a primeira reação é de desconfiança (a menos que já tenham trabalhado vários desafios), num segundo momento entra a perplexidade (achando a tarefa impossível, por exemplo), mas logo se instala a vontade de experimentar. Lemos sempre em voz alta alguns dos textos.

Depois vem o segundo desafio, com textos mais estruturados, ou introspetivos, ou originando a crítica social, por exemplo. Lembro-me muito bem da reação ao desafio 111, que pedia um diálogo numa linha de apoio. Surgiram linhas de apoio de toda a espécie, como ajuda para comprar prendas, esquecimentos, perda de objetos, ou ser menos chato ao conversar. Tanta observação social implícita nestes textos… Ou no 174, histórias de bullying sem que esta palavra entrasse: podem imaginar os textos surgidos, por vezes em turmas do 1.º ciclo. Ou no 60, já para o 3.º ciclo, partindo desta imagem: o apelido ficou preso no arame farpado. Apareceram relatos sobre a 2.ª Guerra Mundial, sobre violência doméstica, sobre asilados políticos.

Acontecem muitas vezes momentos emotivos e libertadores, assim como reflexões onde a turma debate um tema. Não é isto que pretendemos no ensino? Não é criar cidadãos atentos e empenhados na vida, individual e coletiva? Não viemos para o ensino para promover o crescimento e crescer com cada turma? A escrita é não só um veículo de autoconhecimento como de apreensão cultural. Mexe igualmente com as nossas emoções. Mas não ficamos por aqui.

A curiosidade para a leitura é uma consequência lógica, pois estaremos mais capazes de, para lá da história contada, apreciar a forma como foi contada. Não é assim que se mergulha na literatura? Não é esta uma excelente forma de promover o gosto na leitura? Recordo uma turma onde, invertendo a ordem da aula, acabei lendo o texto de Manuel António Pina, O Ioiô (Gigões e Anantes, publicado pela primeira vez em 1973). Em vez da reação «não percebi, o ioiô vai para cima ou para baixo?!» (o que conta a história?), aconteceu a reflexão sobre o processo de construção do texto, entendendo o nonsense e a intenção do autor, ou seja, falando de como foi contada.

Só me resta dizer-vos que experimentem. Tragam o prazer de novo para a escrita. E nada vos obriga (a menos que queiram enviar para publicação no blogue) a escrever em 77 palavras. Precisam de um texto maior? Façam-no, mas apliquem a ferramenta de crescimento literário, obrigando a editar o texto reduzindo-o. Todas as disciplinas agradecerão que se faça este percurso de compreensão de texto, de metacognição, de uso da língua em diferentes contextos, de capacidade de pensar para lá do que foi escrito. Vale a pena.

Bibliografia

Goleman, Daniel (2016) Foco ― O motor oculto da excelência : Temas & Debates

Miller, Donalyn (2009) The Book Whisperer : Jonh Wiley & Sons, Inc.

Orlick, Terry (1993) Free to feel great – Teaching children to excel at living: Creative Bound Inc.

Pina, Manuel António (2018) O Têpluquê e Outras Histórias : Porto Editora

Santos, Margarida Fonseca (2015) Altamente : Edicare

Santos, Margarida Fonseca (2019) Razões para Escrever : Nós na Linha

Storr, Will (2019) The Science of Stortelling : Harper Collins Publisher

Wilson, Donna, Conyers, Marcus (2016) Teaching Students to Drive their Brains : ASCD

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